Viagem na família

         
 Introdução

          Este é um poema do grande Carlos Drummond de Andrade. Na minha opinião, um de seus mais tristes. Dedicado ao escritor e jornalista Rodrigo Melo Franco de Andrade, amigo - e não parente - do poeta. Foi publicado em 1942 no livro José, cujo marcante poema homônimo gerou o popular jargão "e agora, José?". Futuramente, inspirou a música Poema de Itabira, composta por Heitor Villa-Lobos. 
            O poema em questão encerra o livro que sucede Sentimento do Mundo e antecede A Rosa do Povo. Logo, insere-se cronologicamente na fase "menor que o mundo" de Drummond.


O poema 
 
Viagem Na Família
 
No deserto de Itabira
a sombra de meu pai
tomou-me pela mão.
Tanto tempo perdido.
Porém nada dizia. 
Não era dia nem noite.
Suspiro? Voo de pássaro?
Porém nada dizia. 
 
Longamente caminhamos.
Aqui havia uma casa.
A montanha era maior.
Tantos mortos amontoados,
o tempo roendo os mortos.
E nas casas em ruína,
desprezo frio, umidade.
Porém nada dizia. 
 
A rua que atravessava
a cavalo, de galope.
Seu relógio. Sua roupa.
Seus papéis de circunstância.
Suas histórias de amor.
Há um abrir de baús
e de lembranças violentas.
Porém nada dizia. 
 
No deserto de Itabira
as coisas voltam a existir,
irrespiráveis e súbitas.
O mercado de desejos
expõe seus tristes tesouros;
meu anseio de fugir;
mulheres nuas; remorso.
Porém nada dizia. 
 
Pisando livros e cartas,
viajamos na família.
Casamentos; hipotecas;
os primos tuberculosos;
a tia louca; minha avó
traída com as escravas,
rangendo sedas na alcova.
Porém nada dizia. 
 
Que cruel, obscuro instinto
movia sua mão pálida
sutilmente nos empurrando
pelo tempo e pelos lugares
defendidos? 
 
Olhei-o nos olhos brancos.
Gritei-lhe: Fala! Minha voz
vibrou no ar um momento,
bateu nas pedras. A sombra
prosseguia devagar
aquela viagem patética
através do reino perdido.
Porém nada dizia. 
 
Vi mágoa, incompreensão
e mais de uma velha revolta
a dividir-nos no escuro.
A mão que eu não quis beijar,
o prato que me negaram,
recusa em pedir perdão.
Orgulho. Terror noturno.
Porém nada dizia. 
 
Fala fala fala fala.
Puxava pelo casaco
que se desfazia em barro.
Pelas mãos, pelas botinas
prendia a sombra severa
e a sombra se desprendia
sem fuga nem reação.
Porém ficava calada. 
 
E eram distintos silêncios
que se entranhavam no seu.
Era meu avô já surdo
querendo escutar as aves
pintadas no céu da igreja;
a minha falta de amigos;
a sua falta de beijos;
eram nossas difíceis vidas
e uma grande separação
na pequena área do quarto. 
 
A pequena área da vida
me aperta contra o seu vulto,
e nesse abraço diáfano
é como se eu me queimasse
todo, de pungente amor.
Só hoje nos conhecermos!
Óculos, memórias, retratos
fluem no rio do sangue.
As águas já não permitem
distinguir seu rosto longe,
para lá de setenta anos... 
 
Senti que me perdoava
porém nada dizia. 
 
As águas cobrem o bigode,
a família, Itabira, tudo.
Carlos Drummond de Andrade

Ouça o poeta por ele mesmo no vídeo a seguir:
 

 Comentários
               O poeta narra um retorno à Itabira. Seu pai. etéreo e sem emitir qualquer som ("Porém, nada dizia"), acompanha-o na viagem. Sua cidade natal é comparada a um deserto, uma vez que tantos elementos da memória do poeta haviam sido destruídos pela exploração econômica da cidade. No segundo poema do livro Sentimento do Mundo, "Confidência do Itabirano", Drummond já explora essa temática de maneira concisa: a"Itabira é apenas uma fotografia na parede/Mas como dói!". 
               Memórias, sobretudo as doloridas, vêm a mente de Carlos durante seu seu caminhar quase interminável: "Longamente caminhamos/[...] A mão que eu não quis beijar/o prato que me negaram. É angustiante ter a certeza de que nunca se reataria com seu inflexível falecido pai, bem como irmãos e outros parentes mais distantes. Ainda sim, tenta conversar com seu pai (Fala fala fala fala) e acredita que, de alguma maneira, seu pai o perdoaria por tudo o que ocorrera, embora com sua austeridade (Senti que me perdoava/porém nada dizia).
               Convém notar um dos pontos fortes de Drummond: cada palavra versada tem um peso enorme, dificilmente contemplável à primeira lida. Por exemplo o verso "Orgulho. Terror noturno.", que remete ao sentimento que o afastou de Itabira física e sentimentalmente (orgulho), causando-lhe, no sentido figurado, um verdadeiro "pesadelo", que não o deixava dormir sossegado. Mas o poeta preferiu outros vocábulos: "terror noturno". Acredito que seja a fim de dar maior enfoque à noite, que, para o poeta, é algo iminentemente renovador  (vide A Noite Dissolve os Homens, em Sentimendo do mundo).

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